domingo, 18 de janeiro de 2009

Nacionalidade na Chapa

Estrangeiro. O Senhor Árabe que se jogou dos trilhos e o Chapeiro tinham uma coisa em comum: eram estrangeiros. A notícia do jornal rotulava o suicida como Árabe, porém diziam que mudou-se para cá aos 2 anos de idade. O Chapeiro desconfiou. Ele era estrangeiro (ponto). Mas era estrangeiro porque seu corpo era composto de matéria de sua terra. Ele foi alimentado com coisas de sua região desde que nasceu, e sua mãe também, logo seu corpo “era” sua pátria, derivava da terra de seu pais, isso que para ele lhe garantia sua nacionalidade, ser composto pela terra de determinado lugar. Então ele pensou no Árabe. Se o árabe veio para cá com 2 anos, até esta idade ele era composto (crescia a base de alimentos que comia) de matéria Árabe. Porém quando se mudou, passou a comer coisas daqui e quando seu corpo evoluía, utilizava a comida-matéria local, logo ele era menos estrangeiro do que diziam, quando se suicidou. Mas o Chapeiro sabia que o seu caso era diferente, mesmo se comesse até o final da vida ali. Seu corpo foi formado pelo alimento de outras terras e não poderia trocar toda sua matéria. Pensou em engordar o dobro mais 1 kilo de seu peso atual, isso o deixaria com mais matéria local do que a de seu país, mas era uma opção muito trabalhosa e nada saudável. Com um soco, o metro voltou a andar, acelerando bruscamente, para o alívio dos passageiros sufocados pelo claustrofóbico túnel e pelo atraso preocupante.

O Árabe Suicida

Lentamente o metro da linha 4 foi diminuindo a velocidade até parar completamente. Parou entre duas estações, envolto na penumbra do túnel subterrâneo. Os passageiros se olharam como que se perguntando, sem falar, o que poderia ter causado tal evento. O Chapeiro esticou o pescoço, sobre a multidão, sem saber ao certo o que procurava. Pelo sistema de auto-falantes do trem, uma voz grave tentava se sobrepor aos ruídos do aparelho dizendo que um grave acidente na linha 6 atrasaria as linhas concorrentes. No dia seguinte o chapeiro saberia que o “grave acidente” teria sido provocado por um senhor de origem Árabe, que resolveu se suicidar as 7:23 da manhã de uma segunda feira, perto do centro da grande cidade, sob as luminárias de uma movimentada estação. O Chapeiro não pôde deixar de refletir sobre tal acontecimento: - Ok senhor suicida! Não tenho direito de questionar os porquês, porém por que os suicidas não são discretos? Seria mais simples se tal pessoa avisasse quem a quer dizendo “estou indo em uma longa viajem para um retiro espiritual (ou coisa que o valha) e ficarei incomunicável por muito tempo”. Então planeja um suicídio discreto, no meio do nada, de preferência que consuma o corpo (a matéria corpórea), pode-se deixar uma carta para ser entregue tempos depois aos interessados dizendo que morreu de causa súbita, porém branda e rápida. Seria melhor a todos. O metro não iria parar, nem teríamos que passar por cima de manchas causadas pelos líquidos internos do indivíduo.– Incomodado com o atraso, e instigado pelos passageiros que presumiam que tal ato “só poderia ser executado por um estrangeiro” (estavam certos mas não sabiam) o Chapeiro virou para a janela, encostou o ombro e a cabeça continuou a pensar.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Poso

Sua estada era incerta. Quase todo dia, até as três da tarde, seu poso era incerto. Não se preocupava muito, parece que o Chapeiro sabia que de uma forma ou de outra algo iria aparecer e ele conseguira uma cama quente para aquela noite. O equinócio trazia a escuridão cedo; junto com ela, o frio madrugueiro se antecipava com o dilatar das pupilas. O fato de ser canalha e amargo, ajudava nestas horas. Não pensava duas vezes antes de aceitar olhares de senhoras suspeitas ou meninas deslumbradas. Depois de uma aproximação sutil, contava suas histórias mais curiosas de forma sedutora, e transformava a narrativa em laços de desejo. Depois de uma garrafa de vinho ( cabernet sauvignon, e se corte, tinha que constar na composição) ela já conseguia um convite para um chá ou mais vinho nos aposentos da fêmea. Na casa, quando percebia a excitação em ascensão no ar, falava que precisava ir embora, para arrancar o convite do poso. O que o chapeiro estava interessado era o poso. O sexo não era importante, ele gostava mas dispensaria, e se sentiria até melhor se não o fizesse pois conseguiria uma noite de sono com mais horas. Por vezes ele nem gozava. Encaminhava a anfitriã e encenava (mesmo com gemidos tímidos) para poder dormir o sono dos justos. Trocava sexo por poso sem problema. Pela manhã, saia na ponta dos pés para tentar se poupar de despedidas melósas e chatas, e as mulheres, em sua maioria, gostavam. Achavam mágico e misterioso. Isso fazia com que ele garantisse um novo poso, se preciso, em datas futuras. Mas isso acabou quando ele trocou mais uma vez de cidade. Se mudou para a Capital. Em duas semanas ele conseguiu o emprego de Chapeiro no café LeChanson, que ficava depois da grande esplanada.

O que o Chapeiro não têm

A conclusão era óbvia: Não se pode ter o que quer, estar com quem se quer ou onde se quer estar. Simples assim. O desejo era que movia o Chapeiro. O desejo de ter e estar. Amargo era o gosto do saber o que se tem. Uma estranha sensação de sentir falta do que não tem a mão pairava no ar gelado do inverno presente. Uma urgência emergente do vazio solitário de estar em uma cidade nova, cheia de possibilidades, libertaria historicamente e desejada a tempos. Agora que tinha seu objeto de desejo, não sabia o que fazer com ele. Sentia falta de tudo que não podia mais ter. Do ridículo sorriso alheio que lhe escapara pelos dedos até a mais absurda palavra de uma boca que agora não podia se quer olhar. Esse era o jogo. Ficar estático era uma opção muito chata. Mas a ansiedade congelava a ação de decidir. Postado, em pé, na janela do pequeno quarto via esquinas brancas e transeuntes lentos que marcavam seus passos na neve tímida. Tentava extrair da velha cidade alguma resposta milagrosa. O vento trazia a noite prematura e as luzes amarelas dos postes de metal escuro. O nariz vermelho do Chapeiro acusava que era melhor fechar a janela e ligar a calefação. Uma volta algumas horas depois, em busca do nada, era bem-vinda, sempre tomando cuidado para não escorregar nas calcadas de pedra. Assim se passaram os primeiros dias, entre uma felicidade orgulhosa de ter e estar e uma falta sombria do ausente.

O Chapeiro e Deus

Ele não sabia por que mas, sua avó sabia que ele estava com a fé abalada, embora nunca tinha tocado no assunto com ela, afinal não queria nenhum debate religioso com tal senhora. Antes de partir, ela disse com a voz gemida e tremula uma reza na língua de seus ancestrais. De todo o enredo o Chapeiro só lembrava da ultima frase, que soava como algo assim: “iezus mit”. Depois ele foi descobrir que significava “com Jesus”. Aquele trecho ficou em sua cabeça, se repetia como um mantra e não importava que sabia só o final, valia pela reza toda. De alguma forma lhe confortava saber e lembrar disso.
- Existe uma relação interessante entre avós e proteção divina! – pensava ele. – Minha avó materna resmungava algo que soava como “crendios padre”! Na verdade significava “Creo en Dios Padre”, ou “Creio em Deus Pai”, o inicio de uma reza católica. O Mais curioso é que minha era de origem Polonesa e não tinha relação nenhuma com os espanhóis e sua língua! Por que será que ela resmungava o trecho de uma reza espanhola quando queria demonstrar surpresa ou aversão?-
A relação das falas de suas duas avós, fazia o Chapeiro pensar em Deus, mas pensar em Deus sem acredita-lo. Algo o incomodava na idéia de crer, já tinha o feito uma vez, mas não estava mais disposto a isso. Pelo menos não agora.