sábado, 18 de julho de 2009

A Morte do Chapeiro

- Chame o Paulo!
- Senhor como te disse, já telefonamos e ninguém atende...-
Nem Paulo estava ali. Se ele não estava, ninguém mais viria.
O Chapeiro resolveu ficar em silêncio e não discutir com o enfermeiro. Estava fraco e cada palavra proferida era uma imensa dor física que ardia os pulmões e reverberava por toda extensão da garganta. Estava sozinho em um quarto branco. O Silêncio do hospital o irritava tanto como o barulho da televisão. Estava inquieto, mas não poderia fazer muita coisa para mudar esta condição. Ele sabia que poderia morrer durante qualquer cochilada, e tentava se manter acordado. Seus olhos começaram a arder e percebeu que em mais algumas horas iria dormir e possivelmente não acordaria mais. Ele estava com incríveis 94 anos. Nos últimos 20 anos, assistiu ao enterro de suas duas irmãs, dois sobrinhos, de todos seus amigos íntimos e de sua última esposa. Só lhe restará Paulo, que tinha 72 anos, já era avô de uma linda menina chamada Elena.
Seus pensamentos foram interrompidos pela imensa dor que lhe rachava o interior do tronco, retraindo todos os músculos e quase trancando a respiração. Apertou o botão para chamar o enfermeiro de plantão, que de pronto entrou no quarto e aumentou a dose no analgésico do soro. Após regular os aparelhos eletrônicos, o jovem sentiu sua manga sendo puxada pelo enfermo na cama.
- Paulo? – perguntou o Chapeiro em suas últimas...
O Enfermeiro não respondeu nada. Apenas ficou ali, a espera. Se arcou sobre o velho, podendo ver em detalhes as rachaduras brancas de sua boca seca e o amarelo dos olhos sonolentos.
O Chapeiro soltou a manga do jaleco, e delirando, via Paulo no semblante do enfermeiro. Sorriu de canto, fazendo as rachaduras da boca se esticarem.
- Paulo... só tenho a ti... estou com tanta saudades, que só vendo. Onde já se viu, eu fico sozinho o dia todo, todo mundo sai e entra, nem bom dia me dão. É uma coisa. Onde esta sua Tia? Tenho pensado nela ultimamente... cuide do filho dela pra mim. Eu amei muita gente nesta vida. Algumas por uma noite outra por mais de 10 anos, outras pela vida toda. – O chapeiro voltou a agarrar a manga do enfermeiro – Te digo que te amei desde o dia que vi o exame positivo de gravidez de sua mãe, ao lado do seu pai. Fumamos charuto e tomamos champanhe juntos, os quatro. E agora todos eles se foram. Sua tia foi a primeira que me deixou... aquela vadia... agora teu pai... agora você... depois de tudo que eu fiz na minha vida acabo aqui. – soltou a manga do jaleco. O enfermeiro, um pouco assustado, se pois ereto e foi saindo do quarto devagar, sem dar as costas totalmente para a cama. Ele se assustou, pois percebeu a sobriedade do olhar do Chapeiro em suas ultimas palavras. Um medo profundo se juntou a meia-luz do quarto, que o aterrorizando, assim, resolveu deixar o quarto. Ao escutar o barulho da porta se fechando o Chapeiro continuou a falar, agora sozinho.
- Depois de tudo, acabo aqui. Sozinho. –
Deitado de lado na cama, chorou sem lágrimas e sentiu uma imensa dor a cada soluço do choro. Podia sentir seus ossos frágeis sob a tensão dos músculos condenados. E sob a meia luz do quarto, olhava pra parede branca ao lado da cama, quando resolveu se entregar e dormir, pra talvez não acordar mais. E enquanto fechava seus olhos lentamente, pode sentir seu corpo inteiro sendo anestesiado, e teve a consciência que era a morte que lhe tomava o corpo. Estava com os olhos metade fechados quando viu a projeção da luz da porta, ao lado oposto da parede, e a sombra de alguém que entrava. Tudo parecia em câmera lenta e em um silencio absoluto. Fechou os olhos ao mesmo tempo que deu o último suspiro. Mas um segundo antes, pode sentir a mão de Paulo tocar-lhe o ombro.

Premissas de perdão

E por um momento a dor passou. Deixando apenas saudades. Um imensa saudades, apertada e doce. Então o Chapeiro pensou no futuro. Pensou na possibilidade de deixar o exílio. A possibilidade de voltar. Por aquele momento isso não pareceu absurdo. Pareceu natural e sincero. Sentia que o tempo tinha mudado. Tudo estava do mesmo modo, mas algo tinha mudado na situação. Mas também deu graças de não poder realizar esta vontade agora. Mesmo se quisesse deixar o exílio agora não poderia por, por detalhes práticos, como o vôo de regresso, suas coisas em seu apartamento e seu emprego no café. Ele conhecia sua impulsividade, e sabia o quanto isso já foi e era perigoso. Já fez muita besteira a causa dela.
- Passou. Já passou- Disse debruçado sobre o parapeito da sacada, enquanto o vento lhe massageava o rosto. Se sentiu bem, mas logo em seguida se deu conta de seu estado engessado: não poderia fazer nada com isso, com este sentimento, com essa descoberta. Entristeceu. Então divagou em possibilidades novamente, no seu retorno do exílio, nos reencontros como tudo e todos que tinha deixado para trás. Sentiu que tinha achado alguma coisa de valor sobre si próprio, algo que antes estava sob um nevoeiro de dúvidas. Olhou diretamente para o Sol que se caminhava lentamente ao horizonte. Conseguir sentir algum calor, apesar do vento gelado, isso o confortou. E decidiu que deveria, pela primeira vez em todo exílio, planejar sua volta, com calma e sem pressa. Embora não tivesse uma casa fixa, em lugar nenhum do planeta, estava pronto para deixar de ser estrangeiro.

A Grande Derrota

Existem muitas maneiras de perder! Os grandes Generais já diziam que ao perder uma batalha, não necessariamente se perdia a guerra. Para o Chapeiro a coisa parecia muita mais complexa. Ele achava que tinha perdido a batalha, a guerra e a tropa. Ele era inteligente, mas preferia a verdade a vitória. E sua grande derrota começou pelo radicalismo de querer saber a verdade. Primeiro, em busca de um pensamento lógico, perdeu a fé. Investigou sua religião ao ponto de ficar confuso e duvidar de dogmas. Uma derrota anunciada, já que se trata de um dogma religioso. Depois, duvidou do positivismo da vida, também das estruturas sociais, da instituição familiar, do futuro. E por ultimo duvidou da fidelidade de quem ele amava. Entrou em uma investigação perigosa. E durante um mês calculou passos, movimentos, contatos e possibilidades de um traição. Não conseguiu a confirmação, mas decidiu blefar. Em um blefe certeiro conseguiu da sua amada um confissão. Tinha sido traído de fato, e acabara de perder seis anos de dedicação a uma relação, agora, falida.
Preferiu a verdade e arriscou seu amor trabalhado aos detalhes e exaustivamente neste grande período. Perdeu a casa, o carro, os dois cachorros, sua moral, sua alegria e seu rumo.
Em meio ao choro compulsivo ouviu pedidos de perdão, que sem pensar atendeu, dizendo ser impossível não perdoar. E era verdade, ele a perdoou. O que não perdoou, nunca, foi o que ela disse depois, o que para ele foi a grande derrota:
- Estou saindo desta casa. E já que você sabe tudo, vou morar com ele.
Ele parou de chorar na hora e foi arrumar uma mala para sair dali.